terça-feira, 2 de abril de 2019

AUTO DO BOI EM PARINTINS: O REINADO



Parintins, 29 de junho de 2020, às 17h.

            Bumbódromo[1] cheio de moradores e turistas que chegavam a todo instante à espera do desfile dos bois. É o Festival Folclórico de Parintins e Paulo Borges é o delegado titular. Estruturacionista, burocrático, funcionalista e definitivamente confortável com o poder regulador das instituições.
O Plantão estava calmo até então, quando uma agente entrou às pressas com a notícia de um grande tumulto na frente de um dos camarotes.
- Foi agora mesmo!
Um jovem teria sido gravemente ferido por um objeto não identificado. Estava deitado ao chão, com grave sangramento e inconsciente. O movimento causara grande tumulo.
- Ordeno que isolem a área. Quero uma força tarefa deslocada para lá, precisamos chegar primeiro. Nestas ocasiões o tempo é fator determinante!
A polícia chegou igual com o Samu. O rapaz estava caído ao chão. Ao lado do rapaz, uma ave de rapina. Um Carcará, morto, provavelmente por ação humana, que parecia ter voado sangrando até ali e atingido o rapaz, que despencou do camarote.
Preso ao pé da ave, um saco plástico com um pedaço de papel. Paulo ajoelhou-se ao lado do cadáver do Carcará e abriu o papel que dizia:

Quando as duas primárias desfilarem
No início de todos os caminhos,
O perdido será quem
            Mostrará o seu destino.
Chegue antes de nada sobrar
Ou será seu desatino
Como foi o do Carcará
Que feriu o nordestino.

De certo estava diante de um enigma, que para ele não fazia nenhum sentido. Chamou sua equipe para uma reunião e mostrou o conteúdo.
- Vai haver um assassinato. Disse a agente Juliana Reis.
- Você está querendo me dizer que uma ave de rapina trouxe consigo um enredo de um assassinato? Desafiou Paulo.
- Senhor, com todo respeito, veja bem: o rapaz que foi atingido era nordestino. Mas este bilhete se refere a um destino de alguém igual foi o do Carcará. Isso não lhe parece fazer sentido?
- Claro que não, não vou acreditar num “carcará correio”.
- Isso eu lhe digo também, com base nas lembranças que tenho de infância. Lia e brincava muito com enigmas desse tipo.
 Paulo não respondeu. Era muito para ele admitir que uma mulher talvez tivesse razão e que de fato, a ave trouxera uma charada de um crime. Logo deu ordens que todos se dispersassem.
Quando todos se retiraram, leu para si a primeira linha “Quando duas primárias desfilarem...” Olhou para os flashes da TV, mas a imagem não fazia sentido. Em um site de busca local, dois bois desfilavam no anúncio da publicidade. Olhando para os bois, percebeu que ostentavam duas cores primárias: eram o Caprichoso e o Garantido. Azul e vermelho.
- Duas cores primárias! Falou Paulo em voz alta.
O discurso de Juliana, baseado nas memórias do passado, traziam plausibilidade ao que estava acontecendo. Mas Paulo ainda enfrentava resistência. Preso numa jaula de ferro socialmente construída, era o tipo ideal burocrata: racional e institucionalizado. Porém pensou que alguém corria risco de morte e o contexto de suas próprias amarras institucionais, não permitia que ele perdesse tempo idealizando o real. Tornou a ler novamente o verso.
“No início de todos os caminhos”...
- Trata-se de um momento. Um momento específico! Vamos, venham todos a minha sala agora e pensem comigo o que quer dizer o início de todos os caminhos para os bois.
Paulo falava alto e com entusiasmo como tivesse se dado conta naquele momento do risco iminente. Ignorava a ideia inicial de Juliana e quase esquecera que ela estava naquela sala não fosse por ouvir sua voz respondendo:
- O início dos caminhos, só pode ser a concentração do desfile.
- Sim! Um assassinato ocorrerá nas próximas horas na concentração do desfile. Estejam todos atentos. Busquem suspeitos, monitorem a produção dos carros. Precisamos evitar que um crime aconteça!
- Dr. Paulo, esses documentos precisam ser assinados. Disse a escrivã Deise.
Paulo olhou aflito para o relógio, mas sabia que era atividade dele não deixar pendências para o dia seguinte. Todo o efetivo estava em preparação para se dirigir à concentração do desfile, onde possivelmente estava para acontecer um assassinato, mas Paulo, engaiolado em seu ofício, adiou sua chegada ao local para assinar diversos papéis os quais ele nem sequer havia lido. E engaiolado, lembrava-se também do pássaro, que livre, morrera assassinado. Tudo o que assinava naquele instante era protocolo, o que importava era evitar o assassinato na concentração do Festival Folclórico de Parintins.
Paulo chegou trinta minutos depois. A equipe passou informações sobre o movimento tranquilo na concentração. Nenhum suspeito. O grupo do boi Caprichoso já estava pronto para o desfile, o boi Garantido ainda esperava a presença de Augusto Pimentel, responsável por movimentar o boi que ostentava a cor primária vermelha como principal.
Enquanto observavam a movimentação, uma diligência informou pelo rádio que estava acontecendo algo estranho na Granja da Vitória. A Granja parecia ter sido invadida e a casa estava toda revirada. Paulo deu ordens a sua equipe que deixassem para depois a investigação na granja. Ordenou que mantivessem o foco na concentração do desfile, afinal, era um evento de prestígio internacional e que atraía muitos turistas. Tudo tinha que ocorrer perfeitamente para não manchar a imagem do evento de Parintins.
Juliana estava intrigada com a ausência de Augusto para conduzir o boi. Já tinha escutado rumores de que ele sempre fora pontual aos ensaios e não entendia como teria se atrasado no dia mais importante. Resolveu levar sua questão a Paulo.
- Dr. Paulo, o Augusto Pimentel ainda não chegou.
- Isso é problema da organização do desfile. Estou ocupado demais tentando evitar que um crime aconteça.
Quinze minutos depois, o clima de alegria nas escolas foi dando lugar ao desespero. No instante em que uma coruja branca, em voo rasante, rasgou sobre os carros do desfile, aos fundos de um dos carros, jorrava o sangue de Augusto Pimentel, morto com uma perfuração na garganta. Sem a língua e sem as orelhas, que pareciam ter sido devoradas.
Preso por um cordão em seus dedos, um papel em um saco de plástico que dizia:

A pista foi seguida,
Execução realizada.
Mais fácil que esperava,
Pois sua equipe não é de nada.
A coruja rasgou a mortalha[2],
Agora é só esperar.

Qual a cor que falta
para festa começar?
Em breve, se preparem,
O outro também vai dançar.

- O boi Garantido está em perigo! Sim, este assassino planejou matar os homens que dão vida aos bois do evento. Vamos, precisamos ser rápidos!
Dirigiram-se à concentração do Garantido e todos já se preocupavam com o sumiço repentino de Estévão Guimarães, o outro que conduzia o boi. Apesar do clima tenso entre as equipes, as notícias ainda não haviam sido publicamente divulgadas. O público esperava o desfile começar e não seria sensato divulgar que existia um maníaco, um assassino de homens e animais e que, provavelmente ainda estava no local.
Paulo recomendou que as escolas desfilassem e que encontrassem outra pessoa para dar apoio ao movimento do boi.
Sentiram falta de Juliana, que tinha se dispersado da equipe. Roberto, outro agente, deu um recado curto que ela precisou resolver um problema pessoal. Paulo quase ignorou o fato dela não estar presente, não fosse pelo sumiço dela coincidir com o desaparecimento de Estévão Guimarães. Além do mais, pensou consigo, que poemas sobre assassinatos é bem coisa de mulher mesmo.
- Localizem a agente Juliana Reis agora e levem-na para delegacia. A partir deste momento, ela é suspeita do assassinato de Augusto Pimentel e do desaparecimento de Estévão Guimarães.
...
A cena do crime foi isolada. Logo descobriram que o objeto utilizado para furar a garganta de Tony foi uma faca roubada do arsenal dos donos da Granja da Vitória. Partiram para a Granja em busca de mais pistas.
Ao entrar na Granja da Vitória, sentiram um peso ao abrir a porta. Era o corpo de Estévão Guimarães que estava pregado nela com uma faca em sua garganta e outra em seu abdômen. As perfurações tinham atravessado o seu corpo esguio de modo que a faca alojada na garganta prendia seu corpo à porta principal da casa.
O assassinato acabara de acontecer. A Granja estava em silêncio. Todos os bichos aparentemente tinham fugido dali. Aos fundos da casa, cadáveres de porcos e vacas que após a sangria esperavam a mutilação. Mas não havia ninguém na Granja. Como Augusto, o corpo de Estévão estava sem língua e sem orelhas. Nos dedos de sua mão esquerda, um saco plástico com um papel, que dizia:

As primárias não desfilaram
Não sabem o que fazer
Nem vocês não se atentaram
Ao que vai acontecer

Arquibancadas brilhantes
E sons retumbantes
Um altar gigante
Vão nos erigir.

Nunca mais amarrado,
Simbólico era o gado,
Que hoje será real.
E todos vão sentir.

Da exploração ao poder
Todos que nos serviram
Não vão se arrepender.

Paulo tentou contato com os proprietários da Granja. Eles não queriam falar sobre o assunto. Deixaram a Granja uma semana antes, segundo eles, porque estava “mal assombrada”. Os bichos estavam nervosos e nem os cachorros obedeciam mais. Foram buscar os ovos no galinheiro e antes que começassem, as galinhas atiravam todos os ovos na direção deles.
- As galinhas estavam armadas. Todos estavam. O chicote do jumento sumiu e antes que conseguíssemos providenciar outro, Zé Baião foi açoitado pelas costas, pelo jumento. Pelo jumento!
Paulo desligou o telefone. Ele precisava entregar o relatório do plantão que apresentasse ao menos uma linha de investigação e certamente não fazia parte do relatório munição de ovos e açoite de um burro em seu dono.
...
Juliana estava na delegacia quando todos chegaram.
- Muito bem Juliana! Criativa você é, disso não tenho dúvidas.
- Mas do que o senhor está falando?
- Planejar dois assassinatos utilizando como isca uma ave de rapina.
- Mas não fui eu que matei os bois!
- E onde você estava quando assassinaram Augusto Pimentel e Estévão Guimarães?
- Eu, eu... Eu estava ajudando as vacas.
- Você está brincando mais uma vez? Vou manter você presa enquanto garanto que o desfile ocorra ainda hoje.

Paulo ordenou que encarcerassem Juliana. Na revista à agente, um bilhete em seu bolso que dizia: “Sensemaking”.
-  O que isso quer dizer, Juliana?
- Siga as pistas, Paulo. Quem sabe você não aprende que nem tudo segue uma lógica cartesiana[3].
- Vai falar por enigmas também? Pois saiba que tenho tudo planejado, e tudo o que precisa fazer sentido é que existe uma organização institucionalizada onde eu sou o chefe.
- Sensemaking[4], Paulo. Organizing[5]!
- Você está louca! Vamos, levem-na.

Juliana foi levada à cela.
O desfile dos Bois estava atrasado há duas horas e Paulo queria garantir que o evento acontecesse. O poema não saia de sua cabeça. Abriu novamente o papel “As primárias não desfilaram...” “... exploração, poder” “gado simbólico, real...”. Aquilo fazia cada vez menos sentido na cabeça de Paulo.
As equipes conversaram entre si e decidiram que o Amo do Boi[6] dos dois lados deveriam decidir quem iria dar vida aos bois. Tony Medeiros do Garantido e Prince do Boi do Caprichoso e pediram que decidissem entre eles.
- Já temos uma indicação. Queremos que os bois da Granja da Vitória deem vida aos bois de ambas as quadrilhas.
Todos caíram em gargalhadas, menos Tony e Prince que se fitaram como se estivessem se comunicando pelo olhar.
- Diante da situação que estamos vivendo, os senhores ainda encontram tempo para piadas! Façam-me o favor!
- Somos os senhores dos bois e temos poder para decidir.
Trouxeram os bois já ornamentados nas primárias cores azul e vermelho. Eles seguiam com andar firme, cabeças erguidas e olhar focado. Os bois imputavam uma postura de respeito, como nenhum outro animal naturalmente conseguiria.
Quando a equipe do Dr. Paulo chegou ao local, viu os bois tomando seus lugares em altares feitos para eles. A coruja branca assentou em seu ombro e falou: cá está a tradução. Quando ele fitou olhos para coruja, ela voou lentamente. Para trás de Paulo, todos os bichos da Granja.
Paulo correu na direção deles, estavam um pouco para dentro da concentração, o desfile estava sendo anunciado enquanto Paulo se aproximava dos animais.
- Isso não faz a menor lógica cartesiana. Dizia Paulo.
- Isso é o real. Disse o porco.
- Isso não faz a menor lógica cartesiana. Repetia.
Enquanto Paulo parecia hipnotizado por enxergar percepção e sensação como partes da realidade, os bichos arrastavam o corpo ferido de Juliana. Enquanto Paulo parecia hipnotizado por não achar sentido em tudo aquilo, os animais se encarregavam de sujá-lo todo de sangue. Enquanto Paulo parecia hipnotizado, os animais o faziam segurar a faca que ferira Juliana.
O cavalo fitou Paulo nos olhos e disse
- Olhe, você está morrendo!
- Não! Gritou Paulo e saiu correndo para o Bumbódromo ensanguentado e com a faca nas mãos.
- Dr. Paulo, o que o senhor fez?
- Eu não matei Juliana, eu não matei. Foram os bichos, os bichos!
- A Juliana está morta?
Os agentes saíram em busca do corpo de Juliana, mas não encontraram. Paulo era culpado de todos os assassinatos. Enquanto se aproximava ele gritava:
- Eu não matei Juliana e isso... isso não faz a menor lógica cartesiana.
- Isso não faz a menor lógica cartesiana!
- Isso não tem a menor lógica cartesiana. Não me prendam, é um erro.
Tentou usar a faca para ameaçar.
- Foram os animais, eles são inteligentes. Foram os animais!
Paulo Borges foi levado ao manicômio, onde vai ficar por muitos anos. Tentaram abafar o caso e garantiram que o festival acontecesse.

Parintins, junho de 2021
O Festival do ano anterior inovou trazendo a presença de bois verdadeiros. Decidiu-se que a partir daquele ano, os animais participariam efetivamente do desfile. Três meses depois, foram proibidos rodeios e vaquejadas em Parintins. As vacas descobriram um capim que as deixava inférteis e improdutivas, propositalmente comiam deste capim e começaram a trabalhar como bois.
Os animais fadados ao abate, antes do matadouro comiam um tipo de folhagem que apodrecia suas carnes. Quatro meses após, não havia mais consumidores de carne em Parintins.  As ovelhas se expunham em umidade excessiva, provocando fungos em sua pele que tornavam sua lã imprópria para uso. Isso obrigou os produtores a sintetizarem tecidos de fontes não animais.

Na delegacia da cidade, cinco cachorros complementavam o quadro de agentes que trabalhavam lado a lado com humanos. A equipe agora era comandada por uma mulher. Juliana Reis, interpretativista[7], delegada titular.
...




Fontes:

DESCARTES, R. Discurso do Método. Coleção Os Pensadores, vol. 1. Nova Cultural, São Paulo, 1987 (orig. 1637).
DiMaggio P. J.; Powell, W.. The iron cage revisited institutional isomorphism and collective rationality in organizational fields. American Sociological Review, 48, 147-60, 1983.
FERNANDES, Ana Rúbia Figueiredo. Festival folclórico: o que muda em Parintins?. Revista de Estudos Amazônicos, número especial, v. 2, n. 2, p. 99-114, 2002.
Hasselblandh, H.; Kallinikos, J. The project of rationalization: a critique and reappraisal of neo-institutionalism in organization studies. Organization Studies, v. 21, n. 4, p. 697-720, 2000.
Machado-da-Silva, C. L. ; Guarido Filho, E. R. ; Rossoni, L. Campos Organizacionais: Seis Diferentes Leituras e a Perspectiva da Estruturação. RAC. Revista de Administração Contemporânea (Impresso), v. 14, p. 109-147, 2010.
Maitlis, S. & Christianson, M. Sensemaking in Organizations: Taking Stock and Moving Forward. Academy of Management Annals, 8 (1), 2014
Meyer J. W. & Rowan, B. Institutional organizations: formal structure as myth and ceremony, American Journal of Sociology, 83, 340-63, 1977
PECI, A. A nova teoria institucional em estudos organizacionais: uma abordagem crítica. Cadernos Ebape, BR, v.4, n.1, p.1-12, 2006.
PESSOA, Marcus. A lenda da rasga mortalha. Disponível em: https://noamazonaseassim.com.br/a-lenda-da-rasga-mortalha/ Acesso em 29/03/2019.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 2004. Vol. I (Capítulo I e p. 139-160).
Weick, K. E.; Sutclifee, K. M.; Obsfeld, D. Organizing and the process of sensemaking. Organization Science, v. 16, n.4, p. 409-421, 2005.
WEICK, Karl E. Sensemaking in organization. London: Sage, 1995. (Capítulos 1 a 5, p.1-131)
Williamson, O. E. The new institutional economics: taking stock, looking ahead. Journal of economic literature. vol XXXVIII, p.595-613, set/2000.






[1] Campo com capacidade para 35 mil espectadores. O formato dele assemelha-se com o formato de uma cabeça de boi.
[2] Nas regiões do Norte e Nordeste, a coruja branca é conhecida como “rasga mortalha”, ave de um agouro que, ao passar por cima de alguma casa soltando um ruído semelhante a um “pano sendo rasgado”, sinaliza que algum morador por ali está perto de morrer.
[3] Pensamento que acredita que sensação, percepção e, por conseguinte, a opinião e as experiências da humanidade são guias duvidosos para se explicar algo. Busca um método dedutivo longe da influência do que não se pode explicar.
[4] Expressão utilizada para se referir ao processo onde ação e cognição estão recursivamente ligadas e a partir disso, as pessoas trabalham para entender eventos novos.
[5] Expressão utilizada por Hasselbladh e Kallinikos, para designar o processo contínuo de organização.
[6] Representa o papel do dono da fazenda, dono dos bois. Canta as toadas principais do evento.
[7] Abordagem que considera a proposta de compreensão para os fenômenos sociais, com base na busca de significados constituintes do fenômeno. Na história, uma vitória sobre o estruturalismo positivista de Paulo Borges.

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