quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Se se morre de mau humor*

Se se morre de mau humor! – Não, não se morre,
Quando é passageiro que nos surpreende
De repente e raros lampejos;
Quando trânsito, calor, incompetência e dores
Assomos de enfurecer nos raiam n’alma,
Que despedaçada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê estresse alcança!

Antipáticas feições, sorrisos falsos,
Embaraçosa postura, porte raivoso,
Uma agonia, uma lágrima entre os olhos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano de mau humor arrebentar-nos.
Mas isso mau humor não é; isso é delírio
Momento, ilusão, que se esvaece
Ao pôr do sol no fim do dia, ao derradeiro

Desrazão, que as luzes ao morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se mau humor o chamam,
De mau humor igual ninguém sucumbe à perda.
Mau humor é estado; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – fechados
Não vê o grande, o belo, é ser capaz d’extremos,
D’altos ataques, té capaz de crimes!

Incompreender o infinito, a imensidade
E a natureza e Deus; gostar da solidão,
Da cama, sono, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em descontentamento;
E à branda festa, falta o riso da nossa alma
e fontes de pranto intercala sem custo;
Conhece o desprazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O misantropo, o misérrimo dos entes;
Isso é mau humor, e desse mau humor se morre!

Mau humor, é não saber, não ter coragem
Pra dizer o mau humor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
E ignorar o templo onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de mau humor, essas angústias
Inesgotáveis d’lusões desfloridas;
Sentir, sem que se veja, a quem não se tolera,
Incompreender, mesmo ao ouvir, seus pensamentos,
Seguir quem se ama, sem poder fitar seus olhos,
Amar, sem conseguir dizer que amamos,
E, temendo não ser correspondidos no amor que sentimos,
Arder por afogar em mil abraços o vazio do silêncio:
Isso é mau humor, e desse mau humor se morre!




*Paródia do Poema "Se se Morre de Amor" de Gonçalves Dias. Leia o original aqui

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